Crise cambial, colapso do dólar e a guinada da Bolívia às criptomoedas

Mercado Financeiro

A Bolívia acaba de romper um dos últimos tabus econômicos da América Latina: o abandono da confiança cega na moeda fiduciária. Em um movimento que surpreendeu até os setores mais otimistas do mercado cripto, o país firmou um acordo com El Salvador para fomentar o uso de criptomoedas como alternativa viável ao boliviano — uma atitude que vai além do simbolismo diplomático.

O memorando de entendimento, assinado entre o Banco Central da Bolívia e a Comissão Nacional de Ativos Digitais de El Salvador, sinaliza uma ambição concreta: substituir gradualmente o dólar como referência e reduzir a dependência de reservas internacionais em um cenário de colapso econômico interno.

Criptomoeda como política de Estado?

Poucos países ousaram seguir o caminho traçado por El Salvador desde que o Bitcoin foi declarado moeda legal em 2021. A maioria preferiu observar de longe, com um misto de desdém e receio. A Bolívia, no entanto, não tem mais esse luxo. As reservas cambiais do país evaporaram — de US$ 12,7 bilhões em 2014 para apenas US$ 165 milhões em 2025 — o que obrigou o Estado a improvisar. E o improviso, neste caso, pode ser o início de uma disrupção real.

Mais do que uma adesão simbólica, a Bolívia já apresenta números expressivos: apenas três meses após a suspensão da proibição das criptos, o volume de negociações atingiu US$ 46,8 milhões. Em junho de 2025, já eram US$ 294 milhões. Pequenos comerciantes, inclusive, passaram a precificar produtos em USDT. Isso não é apenas tendência. É sobrevivência.

A real motivação boliviana: pragmatismo, não ideologia

É preciso deixar claro: a guinada cripto da Bolívia não se trata de idealismo libertário ou apelo à descentralização. É pragmatismo puro. Com a escassez de dólares, os bancos estão travando importações. Empresas estatais, como a YPFB, já começaram a aceitar cripto como forma de pagamento em operações internacionais. Trata-se de uma resposta forçada pelas circunstâncias — mas que pode gerar efeitos colaterais benéficos e duradouros.

Ao firmar uma parceria com El Salvador, a Bolívia busca mais do que know-how. Busca legitimar politicamente uma política que, embora ainda polêmica, já demonstra eficácia em outro país da região.

Uma eleição decisiva à frente

Esse movimento, no entanto, não está imune às tensões políticas. A Bolívia se aproxima de eleições que podem redefinir completamente sua estrutura de poder. O atual regime socialista, no comando desde 2005, enfrenta resistência crescente. A aposta em criptomoedas pode ser vista tanto como um resgate da confiança popular quanto como uma jogada arriscada num tabuleiro eleitoral altamente volátil.

Com o dólar escasso, o boliviano perdendo credibilidade e a classe média buscando alternativas de proteção, o apoio à criptoeconomia tende a crescer — principalmente entre os jovens e os pequenos empresários, que enxergam na blockchain não apenas tecnologia, mas liberdade.

Conclusão: Bolívia como novo laboratório monetário da América Latina

Estamos diante de um experimento radical. Não por iniciativa, mas por necessidade. E justamente por isso, talvez seja mais genuíno que a experiência salvadorenha. A Bolívia está testando os limites do que uma moeda digital pode representar num país em crise: não apenas um ativo especulativo, mas um mecanismo de resgate econômico.

Caso a aposta dê certo — ou ao menos estabilize parcialmente a economia —, é provável que outros países em dificuldade sigam o mesmo caminho. Se o dólar já não cumpre seu papel de estabilidade e confiança na América Latina, talvez o próximo modelo de política monetária venha da blockchain.